domingo, 17 de agosto de 2014

Rei Lear


Iniciantes, amadores ou profissionais: encenar uma peça de William Shakespeare não se revela uma tarefa fácil para qualquer ator, especialmente em razão dos diálogos densos e dos acontecimentos trágicos característicos das obras deste que é considerado um dos maiores dramaturgos da história. E, se encarar um de seus personagens já é um tremendo desafio, imagina encarar vários deles ao mesmo tempo, transformando os textos shakespearianos em nada mais nada menos que um monólogo.

Pois é justamente assim que o famoso conto de Rei Lear, escrito por Shakespeare, nos é apresentado no palco do Teatro Eva Herz, que tem como cenário apenas uma cadeira em um fundo preto ocupado por um único ator: o grandiosíssimo Juca de Oliveira que, com 79 anos, encarou tal desafio de forma excepcional, sendo ovacionado pela plateia.

Dirigido por Elias Andreato, o monólogo Rei Lear traz a história de um rei octogenário tomado pela loucura, após a grande frustração sofrida ao deixar seu reinado para duas de suas três filhas, Goneril e Reagan, não deixando nada para a caçula, Cordélia – simplesmente por ela não ter adulado o pai como suas irmãs, dizendo amá-lo na medida certa, nem mais e nem menos – e ser traído e expulso justamente pelas duas filhas mais velhas, quando ele, já idoso e cansado, busca se aconchegar nos lares delas.

Tomado pelo ódio e pela tristeza, ele começa a caminhar sem rumo, na companhia de seu bobo da corte, e então passa a ter surtos de devaneios dada a tamanha decepção que lhe assola. A fidelidade à obra escrita por Shakespeare termina aí, já que Juca resolve dar um novo fim à história, que no monólogo escapa do final acentuadamente trágico destinado a cada um dos personagens, como é de praxe nas obras shakespearianas.

Pode até ser que o novo final não agrade muito os mais fascinados pelos textos do dramaturgo inglês, mas o fato é que, durante os 60 minutos de peça, Juca conduziu o texto de modo fantástico, dando a devida dramatização a cada palavra dita e denotando perfeitamente bem as diferenças entre cada personagem que ele interpretou, permitindo que o público os identificasse e os distinguisse claramente.

Sem qualquer figurino e numa postura bem à vontade no palco, Juca leva os espectadores para a trama apenas com sua atuação e entonação verbal, chegando até a emocionar a plateia. Isso ocorre principalmente nos momentos finais da peça, trazendo a história de Shakespeare para o mundo atual e despertando uma reflexão sobre quantos pais, após passarem grande parte de suas vidas se doando inteiramente aos filhos, são humilhados e esquecidos em asilos pelos seus próprios herdeiros, assim que estes crescem.  Trata-se de um excelente monólogo para apreciar, se encantar e refletir.

Por Mariana da Cruz Mascarenhas 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Tribos



Gritar! Julgar! Condenar! Criticar! São muitas as maneiras com as quais as pessoas utilizam seu vocabulário para expressar sentimentos como raiva, angústia, inveja, frustração, entre outros. Infelizmente, estes sentimentos parecem cada vez mais exercerem total hegemonia sobre aqueles nos quais as pessoas utilizam de palavras e gestos para manifestarem verdadeiro carinho e amor, e assim estabelecer um convívio harmonioso, garantido por uma peça fundamental: o saber ouvir.

É justamente esta a mensagem trazida pela comédia dramática Tribos, que está em cartaz no Teatro Tuca. Com diálogos extremamente afiados e sarcásticos, dotados de um humor negro, esta inteligente trama narra a história de Billy, um garoto surdo que convive numa família completamente desequilibrada.  

Enquanto seu pai Christopher (Antônio Fagundes) passa o dia a dia se queixando principalmente de seus dois outros filhos Daniel (Guilherme Magon) e Ruth (Maíra Dvorek), que apesar de crescidos ainda moram com o pai e a mãe Beth (Eliete Cigarini) e são extremamente dependentes deles, Daniel se mostra um rapaz completamente bipolar, sendo assolado por surtos agressivos e alucinações em diversos momentos.  Já Ruth é alguém que recorre às apresentações de canto que faz na Igreja, única ocupação a qual se dedica, como uma fuga desesperada para ser aceita por um determinado grupo, na fantasiosa crença de ser idolatrada por ele.

O humor negro se faz fortemente presente na família, principalmente por parte de Christopher e de Daniel, que satirizam pesadamente seus próprios familiares e também pessoas deficientes, judeus e por ai vai, denotando uma linha de pensamento sempre politicamente incorreta. Tal cenário fica ainda mais acentuado quando Billy começa a namorar Silvia (Arieta Corrêa), uma garota que, ao contrário de Billy, nasceu numa família de surdos e agora é ela quem está perdendo a audição. Assim que Silvia é apresentada à família de seu namorado, ela é praticamente bombardeada por perguntas satíricas, principalmente por Christopher, que considera uma idiotice a linguagem de sinais e não aceita que ela a ensine para seu filho surdo, já que ele não o considera um deficiente auditivo.

Por trás de toda esta história escrita pela inglesa Nina Raine e dirigida por Ulysses Cruz, existe uma sensacional crítica subliminar que faz refletir o nível acentuado de egoísmo perpetrado na sociedade atual. Apesar de Billy ser o deficiente auditivo, é justamente a família dele que denota total surdez para os problemas do outro, de modo que cada um concentra-se apenas em viver dentro de suas bolhas narcisistas, condenando as atitudes dos demais, ao invés de olharem para seus próprios defeitos, ou ainda julgando as pessoas em determinadas tribos, sem contar que eles já constituem uma tribo da pior espécie por estagnarem-se em suas redomas, enquanto atacam verbalmente os demais.

Isso sem contar a inveja, explícita em Daniel, por exemplo, quem, apesar de proteger o irmão Billy, não se conforma ao vê-lo com uma namorada e ainda arrumando um emprego, ao contrário dele que está sozinho e desempregado e que via no irmão, até então, um exemplo de fracasso que servia para consolá-lo.

Trata-se de uma peça que cativa do começo ao fim, devido aos diálogos inteligentes e reflexivos, que destacam a nossa surdez nos dias de hoje, ou ainda quando até nos dispomos a ouvir o outro, mas com o único intuito de filtrar apenas aquilo que queremos ouvir ou distorcer as palavras do outro, de acordo com os nossos interesses.

Contribui para cativar o público o excelente trabalho cênico de todo o elenco, com destaque para os atores Bruno Fagundes, filho de Antônio Fagundes – cujo personagem mostra-se desafiador por ter que transmitir suas aflições internas de modo muito mais contido que os demais personagens, algo que Bruno tira de letra – e para Guilherme Magon – cujo personagem é o oposto de Billy, exteriorizando ao máximo suas emoções – quem vive o personagem intensamente, paralisando o olhar dos espectadores.   

Por Mariana da Cruz Mascarenhas